quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O direito não é ciência normativa: a reflexão de Agostinho Ramalho Marques Neto

Por Márcio Berclaz

Precisa-se de um direito comprometido com a realidade social. Há de se trabalhar o direito com consciência crítica, afinal, o direito visto como “simples sistema normativo tem falhado continuamente na consecução de seus objetivos últimos, que são a justiça e a paz social”. Não é surpresa que “as normas jurídicas produzidas pelo Estado frequentemente servem aos interesses das classes socialmente dominantes, em prejuízo dos contingentes mais numerosos da população”.  O conteúdo social do direito fica, assim, no segundo plano, preferindo o direito as afirmações dogmáticas, muitas dessas assentadas como verdades absolutas e inquestionáveis. Há um ranço e um “sono dogmático” que precisamos romper e despertar e um dos caminhos a serem trilhados é a opção por uma epistemologia dialética. Todas essas ideias são propostas por Agostinho Ramalho Marques Neto, valoroso professor maranhense e grande estudioso da filosofia e da sociologia do direito, além de psicanalista,  definido como um dos melhores professores de introdução ao direito por ninguém menos que Roberto Lyra Filho.
Agostinho Ramalho Marques Neto é desses juristas que opta pelo pensamento crítico do direito, colocando a dogmática (e a metafísica da dogmática ou os postulados colocados a priori), literalmente, no seu devido lugar, refletindo sobre um direito que não seja puro e simples instrumento de dominação, um direito como ciência social, um direito que é conhecido através de uma epistemologia dialética, dentro de um determinado quadro de espaço e de tempo.
Alguns princípios epistemológicos de Agostinho Ramalho Marques Neto- que precisa ser difundido e conhecido a todos estudantes de direito,  merecem ser apresentados: 1) só há direito dentro do espaço social; 2) as proposições teóricas do direito são sempre retificáveis; 3) o fenômeno jurídico não prescinde de um enfoque interdisciplinar; 4) a norma jurídica é apenas um dos aspectos e momentos da elaboração e aplicação do direito, sendo que sua eficácia para além de coerência interna e hierarquia mede-se pela sua interação com o meio social.
Urge aprender que o direito precisa saber dialogar com outras ciências, notadamente a psicanálise, inclusive para perceber que a prática do direito, a realidade do direito, revele a busca incessante e, ao mesmo tempo, a permanente falta de um objeto, no caso, a Justiça. Essa falta, ainda mais na nossa realidade latino-americana, parece ser constitutiva.
Por certo  que, nesse contexto, é necessário pensar o direito a partir das categorias de Marx, na dimensão do conflito que evidencia a incapacidade da segurança ser adotada como critério, posto que contribui para a manutenção dos interesses das classes dominantes.
Agostinho Ramalho Marques Neto, na sua obra “Introdução ao Estudo do Direito: conceito, objeto e método), passeia com desenvoltura entre expressões do idealismo e o empirismo apresentando  correntes e expoentes desses movimentos.
O direito pensado pelo idealismo, ou seja, desvinculando do ambiente social ao qual se refere e crente na existência de “verdades reveladas”, percorre a escola do direito natural de Grotius (1583-1645) e Pufendorf (1632-1694) que rompe com o elemento teológico e constrói a importância da ideia de laicização do direito, abrange a concepção do direito natural como dimensão moral de Thomasius (1655-1728) e Leibniz (`1646-1716), passando pelo racionalismo de Kant (1724-1804) transposto para o direito na “Crítica da Razão Prática” fulcrado na ideia de liberdade e na concepção do direito ao lado da moral como ordens normativistas que regem as condutas humanas. A trajetória persiste pelo idealismo absolutista do direito monista de Hegel (1770-1831), alcançando ainda os neokantianos Stammler (1856-1938 – teoria do direito natural variável no conteúdo em função das experiências jurídicas concretas, mas fixo na forma) e Radbruch (e seu relativismo que limita o direito ao dever ser) preocupados em resgatar o valor da justiça, sem esquecer do racio-vitalismo jurídico de Luís Recaséns Siches que, nas suas reflexões sobre a essência e a validade do direito, afirma caber a teoria do direito discutir à primeira e à axiologia jurídica desenvolver o segundo aspecto, sendo o direito uma obra social variável no tempo e no espaço produto da cultura; o problema é entender que o direito tem como valores certeza e segurança. Não se pode esquecer a proposta de Giorgio Del Vecchio (1878-1970) que, com seu jusnaturalismo formal, estabelece o direito como heterônomo,  bilateral e intersubjetivo, como uma forma pura que condiciona, tendo no direito natural o seu parâmetro de justiça.
No lado das correntes empiristas, Agostinho destaca a Escola da Exegese (Bugnet, Aubry et Rau, Demolombe e Marcadé), construída a partir da ideia do direito exclusivamente dentro da lei e dos códigos, entendimento essencialmente normativas que tem na norma algo a ser pressuposto, uma dada consciência coletiva, proposta diferente da Escola Histórica (Gustavo Hugo, Puchta, Savigny Jhering) que abre frentes à perspectiva sociológica para o direito que, por exemplo, para Duguit, relaciona o direito com a solidariedade social de matriz durkheiniana, merecendo destaque o naturalismo jurídico de Pontes de Miranda.
O dogmatismo normativista de Hans Kelsen (1881-1973), por sua vez, ao buscar uma pureza objetiva descomprometida da ideologia, da política, da economia e de qualquer outra fonte axiológica, aposta na norma vigente dotada de coação como um elemento formal decisivo.
Derradeiramente, merece destaque a teoria egológica concebida pelo argentino Carlos Cossio (1903-1987) pautada pelo método fenomenológico, que considera a conduta humana na sua intersubjetividade na perspectiva da norma como condição, entendendo que os objetos são de quatro categorias –  natural, cultural, ideal e metafísico, possuindo não só uma estrutura formal, mas um conteúdo fático-ideológico.
Na investigação do direito e do seu esqueleto essencial (conceito, objeto e método, o interessante da reflexão proposta por Agostinho Ramalho Marques Neto é que nela tanto o racionalismo como o empirismo, por serem visões dogmáticas, constituem “obstáculos epistemológicos à elaboração científica do direito”, que precisa ser dialética, correlacionando sujeito e objeto para a construção do sentido.
Para um conceito dialético do direito todo e qualquer dogma ou crença em verdade estabelecida não serve, seja pela fonte da norma, seja pelo valor, seja mesmo pela crença no valor.
O direito, definitivamente, e o seu conceito, é algo em construção à luz das condições reais de existência, uma ciência social, mas não uma ciência normativa! A norma é apenas um dos elementos que viabilizam a aplicação do direito, um elemento técnico e prático necessário, mas evidentemente não suficiente, que precisa ser constantemente submetido à crítica, revisões e retificações.  Conceituar o direito criticamente nesses termos, psicanaliticamente longe do “imperativo do gozo” e da domesticação pura, simples e do “pacto simbólico” da norma, já é um bom começo, um esforço cognitivo que faz toda a diferença.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013)

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