segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Contradiçoes e ingenuidades presentes na concepção solidária

Flávio José Domingos

Muito se fala em alternativas “por dentro do sistema” ao capitalismo. Duas dessas possíveis alternativas a chamada economia solidária ganha destaque relevante. Esses dois termos são conceitualmente diferentes, e assim merecem ser tratados. Desse modo, tratarei de uma hipótese que exponho nesse texto: alternativas ao capitalismo “por dentro do sistema” são passíveis de contradições tais que não permitem que essa alternativa seja real.
Passemos, primeiramente, a uma análise da questão da economia solidária: esta é apresentada por Paul Singer (um dos precursores da economia solidária no Brasil e secretário do governo Federal à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho) como “um outro modo de produção [em oposição ao capitalismo], cujos princípios básicos são: a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual”. Nessa definição do professor Singer, estão colocadas algumas questões importantes em que me concentrarei para desenvolver meu argumento.
Primeiro, a questão da oposição ao capitalismo e sua efetividade como tal. As experiências históricas de economia solidária datam do século XVII (tão antigas quanto o próprio capitalismo industrial). O surgimento dessas experiências veio exatamente como alternativa ao empobrecimento das classes populares na Inglaterra no boom da primeira Revolução Industrial. Se essa é uma alternativa viável, qual (is) a (s) razão (ões) que explicam a hegemonia do capitalismo à sua “irmã” economia solidária? A questão, na minha opinião passa por uma questão central: o capitalismo foi vitorioso porque foi gerado por uma luta de classes (na transição do feudalismo para o capitalismo) entre nobreza cristalizada em interesses do passado e a burguesia (nova classe dos grandes comerciantes) onde a burguesia saiu vitoriosa e plenamente hegemônica. Sendo assim, as condições materiais, políticas e ideológicas estavam postas ao pleno desenvolvimento do capitalismo.
Dessa maneira, penso que é errônea a definição da economia solidária como um modo de produção. Ela (economia solidária) é definida dessa forma pela análise micro, ou seja, caracterizando a empresa solidária com contrapartida a empresa capitalista. É verdade que o modus operandi de uma cooperativa (exemplo clássico de empresa solidária) é diferente de uma empresa capitalista clássica. Mas não é suficiente essa análise micro para caracterizar um modo de produção, pois, de acordo com a tradição marxista (ao qual penso que a maioria dos defensores da economia solidária ainda são vinculados) a análise do “modo de produção” é antes de tudo uma análise da apropriação SOCIAL do capital, das disputas econômicas que se dão na produção e distribuição de riqueza, e dos reflexos da luta de classes no aparelho de Estado e no conjunto da sociedade. Vejamos algumas contradições dessa análise micro.
Imagine uma cooperativa de pequenos produtores rurais de leite: Imagine também que essa cooperativa funcione de acordo com os princípios da economia solidária, ou seja: todos cotizam para construir o galpão, comprar o maquinário, etc. Dessa forma, todos seriam detentores de capital. Se ela funciona com os princípios de economia solidária suas deliberações acontecem em assembleias de associados. Mas obviamente, com o crescimento dessa cooperativa, as decisões administrativas corriqueiras deverão ser tomadas por uma “executiva”. Aí está uma primeira contradição. Essa executiva não poderia fazer com que a empresa solidária fosse burocratizada em detrimento da democratização? Ou ainda, ela não ensejaria dentro da cooperativa uma meritocracia e uma disputa aos moldes da empresa capitalista? Creio que a resposta para essas duas perguntas seja positiva, sendo assim, temos uma contradição de princípio.
Outra situação que poderia acontecer a essa cooperativa imaginária: Suponha que ela cresça e ganhe relevância regional. Ela estaria agora com jogadora em um jogo de concorrência com outras empresas capitalistas (grandes laticínios). Uma coisa que o capitalismo nos ensinou ao longo de sua história, é que o jogo concorrencial leva, necessariamente, a concentração de capital ou a subordinação do pequeno capital ao grande capital, ou seja, duas opções são possíveis: a) um grande laticínio compra a cooperativa (ele possui condições para isso) ou; b) esse grande laticínio força (pela via do poder econômico) a cooperativa a vender exclusivamente para ele). Daí uma segunda contradição micro, é pensar que uma cooperativa pode viver SEMPRE como cooperativa (no sentido dado pelos defensores da economia solidária) em um jogo concorrencial no bojo da concorrência capitalista que, tradicionalmente, leva ao monopólio e o aumento das disparidades entre grandes detentores do capital e pequenos ou médios detentores de capital.
Focar nessa análise micro torna, na minha opinião, os defensores da economia solidária uma tanto quanto ingênuos. Primeiro, pensar que basta se organizar de forma coletiva para superar o julgo do grande capital em atividades que são interessantes para o capitalismo. Como descrevi anteriormente, embora os antigos trabalhadores, agora cooperados, fujam de uma contradição natural entre capital e trabalho, os mesmos cairão em uma contradição entre grande capital monopolista e pequenos capitais associados.
Outra ingenuidade que podemos enxergar é a crença que o Estado poderia regulamentar um mercado à parte do “mercado capitalista” para as empresas solidárias na qual esse tipo de empresa seja favorecida. O Estado não pode ser visto com um ente isolado e superior às disputas econômicas e sociais. Ao contrário. O aparelho de Estado é antes de tudo, um representante dos interesses da classe dominante (como estamos falando de capitalismo, leia-se classe burguesa). Qualquer tentativa que parta da classe trabalhadora só receberá “migalhas” do Estado no sentido de amenizar e não resolver o problema dos trabalhadores. Em suma, pensar alternativas “por dentro” do capitalismo, sem romper de fato com o mesmo é uma utopia que (salvo raríssimas exceções) tende sempre a serem subjugadas pela força do grande capital. É impossível uma outra concepção de sociedade, pautada no coletivismo, no acesso aos meios de produção sem uma “revolução social” que proporcione tal transformação.

1Professor do curso de Ciências Econômicas da UFAL – Unidade de Santana do Ipanema

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